Desenhos botânicos da Viagem Filosófica x Flora brasiliensis:
identificação de modelos de representação

Juliana Gines Bortoletto Monteiro

As questões relacionadas aos direitos autorais são expandidas ao longo da história, passando pelo aperfeiçoamento das técnicas de impressão até a chegada ao mercado editorial. Na atualidade, o autor por meio da sua obra, pela uniformidade do seu estilo, pela conformidade conceitual e originalidade, colaboram para a comprovação de um determinado discurso, da autenticidade dos seus projetos, na existência de idéias únicas. A Razão, caracterizadora do século XVIII, move-se em direção a estes conceitos, cujo aspecto determinante está ligado às questões econômicas e sociais. A partir do momento em que se estabelecem relações comerciais, para proteção dos autores, são fortalecidas as questões de criação, acontecendo um contrato entre o Estado e o autor que passa a mediar os interesses e conflitos provenientes dos interesses autorais. O período de realização da Viagem Filosófica (1783-1793) está situado num tempo em que as questões autorais não estão fixadas, ainda predominando as trocas de informações, por meios escritos e visuais sem haver a preocupação em definir os autores e respectivos méritos.

Nesta perspectiva, os desenhistas da Viagem Filosófica fizeram uso de modelos de representação através dos materiais teóricos levados e consultados pela expedição no decorrer da Viagem. Comprovadamente há uma identificação direta com determinados desenhos de Buffon 1 e desenhos zoológicos da Viagem. Ao mesmo tempo em que se verifica o uso de ilustrações de Buffon pelos desenhistas da Viagem Filosófica (principalmente nas que exigiam o conhecimento de técnicas de desenho anatômico), deparamos com a situação inversa. Neste caso, trata-se da temática em que os desenhistas tinham uma formação constituída, a botânica que veio a tornar-se modelo para algumas ilustrações da obra Flora brasiliensis, ainda sob investigação da sua totalidade.

Patrocinada pelos imperadores da Áustria e do Brasil e pelo rei da Bavária, a obra produzida entre 1840 e 1906 pelos editores Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, contou com a participação de 65 especialistas de vários países. Possui 22.767 tratamentos taxonômicos de espécies, reunidos em 15 volumes, divididos em 40 partes, com um total de 10.367 páginas 2. Além dos tratamentos taxonômicos, escritos em latim, a Flora brasiliensis possui 3.811 litografias e é considerada, até hoje, uma das maiores obras botânicas, devido aos seus inúmeros volumes e qualidades das ilustrações.

Neste período, o Brasil passa a ser divulgado por artistas e escritores que, com a abertura dos portos, estabelece a promoção do país no exterior, através da crescente troca de informações, publicações, álbuns e desenhos. Com a presença da corte portuguesa apareceram os primeiros ateliês xilográficos, seguidos pelos litográficos, permitindo uma maior reprodução e circulação de conhecimento visual.

Procedimentos como cópias eram usuais, feitos para multiplicar o conhecimento entre cientistas, havendo especialistas neste ofício, "O redesenho era o recurso utilizado na etapa de produção gráfica para conferir valor artístico à publicação e tornar os desenhos originais propensos à gravura. É notadamente a partir do século XIX e no século XX que surgem os critérios de valorização de desenhos originais" 3.

Especificamente sobre a autoria das ilustrações da obra Flora brasiliensis, Belluzzo destaca: "No atual estágio dos estudos sobre esse acervo não se dispõe ainda de uma precisa atribuição autoral do lote de desenhos" 4.

Convém, com este propósito, fazer considerações sobre alguns desenhos botânicos da obra Flora brasiliensis, o primeiro da espécie botânica "Swartzia sericea" (Ilustração 1), localizado no Volume XV, Parte II, Fasc. 50, Prancha 10, e publicado a 1 de Dezembro de 1870, e a sua conformidade com o desenho botânico da mesma espécie feito por Joaquim José Codina, "Swartzia sericea" (Ilustração 2), feito no decorrer da Viagem Filosófica (1783-1793).

Seguiremos, numa observação direta dos elementos do desenho, começando pelas folhas, no desenho de Codina, o primeiro ramo situado no lado direito do caule: está inacabado, mas é repetido na litografia da Flora, acrescentando os veios da folha. O ramo colocado do lado esquerdo, também inacabado, é colocado de modo oblíquo na Flora, causando uma sensação de tridimensionalidade, entretanto, as características foram mantidas. Num dos galhos, formado por flores e localizado sobre as folhas, a representação de Codina é novamente seguida, acrescentando-lhe flores. Já a representação do fruto é rigorosa em relação ao desenho de Codina, até mesmo a parte que liga o fruto ao galho é repetida na sua posição e estrutura. No outro ramo de flor, do lado esquerdo, também é adotado o desenho de Codina, apenas acrescentando flores. Nas representações isoladas, principalmente do fruto aberto e das sementes, são representados idênticos ao desenho de Codina. São, contudo, os pormenores adotados com rigor que tornam indiscutível o uso do desenho de Codina como original para a ilustração em litografia da mesma espécie publicada em Flora brasiliensis. A saber: o delineamento do galho, as suas divisões e especificidades, a vista escolhida para representação, os cortes e nós existentes no caule da planta, a curvatura do caule que segura o fruto, o detalhe da ligação entre o fruto e o galho do fruto aberto e fechado e a abertura do fruto representado com uma das partes mais aberta do que a outra. Todos estes componentes patenteiam que, apesar de haver acréscimo de detalhes e estruturas da planta, a configuração geral desta obra pode ser considerada de autoria original de Joaquim José Codina.

A seguir outro exemplo, trata-se da ilustração de "Cassia sylvestris" (Ilustração 3), publicada na obra Flora brasiliensis, no Volume XV, Parte II, Fasc. 50, prancha 38, a 1 de Dezembro de 1870, cujo modelo foi feito por Joaquim José Codina, "Cassia sylvestris" (Ilustração 5). Neste caso, a imagem da Flora foi espelhada (Ilustração 4) para desvendarmos de que modo foi utilizada a imagem de Codina na ilustração da mesma espécie em Flora brasiliensis.

A imagem produzida para a Flora é peculiar na medida em que o artista fez uso de uma montagem de elementos, isto é, as partes que considerava terem sido executadas corretamente realizou a imitação, atuando numa dinamização de posições. Os componentes rigorosamente reproduzidos são: primeiro ramo de flores situadas do lado direito (nesta parte utilizou a posição original do desenho de Codina); já no traçado da vagem entreaberta, faz a reprodução exata, porém, espelhada, método facilitado pelo emprego da litografia, que se faz justamente pela inversão da imagem.

Os outros componentes da imagem são usufruídos e complementados; são os casos de: o ramo de flores centrais, que possui a mesma configuração do desenho de Codina, com o acréscimo de flores abertas; ao lado no ramo esquerdo, repete-se a mesma situação. A estrutura do caule e ramificações seguem os padrões da imagem invertida, apenas numa curvatura mais acentuada. O tratamento dado em Flora para as folhas é mais detalhado, sendo o fator mais afastado do original. Conforme examinado, seguramente, o artista que atuou na ilustração da espécie Cassia sylvestris de Flora brasiliensis usufruiu da imagem feita anteriormente por Joaquim José Codina.

Outro exemplo do uso de desenhos feitos no decorrer da Viagem Filosófica relaciona-se com a ilustração da espécie "Cochlospermeae codinae" (Ilustração 6), localizado na Flora brasiliensis, no Volume XIII, Parte I, Fasc. 55, Prancha 86, publicada a 1 de Outubro de 1871 e cujo referencial é o desenho de Joaquim José Codina, "Cochlospermun" (Ilustração 7).

Neste caso, todos os elementos da composição foram copiados, desde a estrutura da planta até aos desenhos isolados, apenas reorganizados na ilustração da Flora. Este exemplo comprova a consulta aos desenhos da Viagem Filosófica pelos artistas no período de preparação da obra Flora brasiliensis. Possivelmente, o desenho foi tirado diretamente do original, pela similitude nos pormenores, como, por exemplo, uma das folhas à frente do caule e outra atrás e ainda pelas proporções rigorosas entre as formas. Neste caso, o artista não se deu ao trabalho de adicionar, redefinir ou reestruturar a composição, apenas acresceu outros elementos que dizem respeito à espécie "Cochlospermeae insigne", método regularmente utilizado nas litografias da Flora.

Este estudo inicial faz parte da tese de Mestrado apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e trata-se de um primeiro levantamento sobre as analogias existentes entre os desenhos botânicos da Viagem Filosófica e a Flora brasiliensis, sendo que a investigação total dos espólios visuais de ambos será realizada na tese de Doutorado. As indagações iniciais levaram ao confronto de imagens que resultou numa análise original sobre os modelos de representação utilizados, as soluções empregues pelos desenhistas e a fundamentação do uso dos mesmos, criando, assim, um novo referencial sobre os desenhistas e desenhos da Viagem Filosófica e, por conseguinte da Flora brasiliensis. Demonstram-se, assim, preliminarmente, a importância da Viagem Filosófica, de seus desenhistas, das suas qualidades científicas e artísticas face ao contexto de ilustração científica do século XVIII.


Ilustração 1: Swartzia sericea - Flora brasiliensis

Ilustração 2: Swartzia sericea - Viagem Filosófica

Ilustração 3: Cassia sylvestris - Flora brasiliensis

Ilustração 4: Cassia sylvestris (espelhada)

Ilustração 5: Cassia sylvestris - Viagem Filosófica

Ilustração 6: Cochlospermeae codinae - Flora brasiliensis

Ilustração 7: Cochlospermun - Viagem Filosófica

1 Bortoletto, Juliana Gines Monteiro, Desenho e Ciência: A produção iconográfica da Viagem Filosófica ao Brasil no século XVIII, Coimbra, Tese de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009.
2 Shepherd, George J., .Uma breve história da obra., Projeto Flora brasiliensis, Unicamp: Flora brasiliensis, https://flora.cria.org.br.
3 Belluzzo, Ana Maria de Moraes, .A Missão austríaca, 1817-1821., O Brasil dos Viajantes, São Paulo, Fundação Odebrecht, 1994, p. 112.
4 Belluzzo, Ana Maria de Moraes, .A Missão austríaca, 1817-1821., O Brasil dos Viajantes, p.112.